Por Gil McElroy, VE3PKD. Traduzido e adaptado por Alisson, PR7GA.

Os primeiros a transmitir com banda lateral única revolucionaram o Radioamadorismo. Ao longo do caminho, o SSB afetaria até mesmo o curso da Guerra Fria.



A capa da edição de janeiro de 1948 da revista norte-americana QST era bastante incomum. Havia um osciloscópio retratado, algo que poucos amadores possuíam ou conheciam na época. Porém não era isso que chamava a atenção, mas o estranho envelope de onda modulada exibido em sua tela. Ou melhor, na verdade, apenas um lado do envelope da onda modulada. Normalmente simétrico em torno de um eixo, o envelope estava faltando uma metade inteira. O que era aquilo?

Nas páginas da edição, não havia explicação para a curiosa imagem. Porém, havia um editorial e três artigos, todos dedicados a apresentar aos radioamadores o misterioso assunto "S.S.S.C." - sigla em inglês para "banda lateral única com portadora suprimida". 

Os artigos também discutiam o estado confuso das bandas radioamadoras na época, cheias de estações que transmitiam em AM cujos operadores monopolizavam a frequência, muitas vezes interferindo uns nos outros. 'No atual e habitual emaranhado de 'interferência de fonia', editorializou o QST, 'temos os gritos penetrantes dos heteródinos'. O texto chegou ao ponto de ousadamente prever que “tudo leva a crer que o SSSC se torne o modo preferido pelos radioamadores em um futuro próximo”.  [N. do T.: A menção a "gritos" se refere ao fato de que estações operando em AM em frequências próximas causam um fenômeno chamado "batimento", cujo resultado é um estridente e incômodo apito no receptor.] 

Os três artigos que apareceram naquela edição lançaram as bases para a transformação do radioamadorismo que ocorreria nos próximos vinte e cinco anos. Para a maioria dos radioamadores, o estranho padrão mostrado na tela daquele osciloscópio publicado na capa da revista seria uma introdução ao que viria a ser chamado simplesmente de “banda lateral” ou “SSB”.

Impacto enorme


Se houve um avanço técnico que marcou o radioamadorismo na segunda metade do século XX, certamente seria a banda lateral única. A transição do AM para o SSB seria tão controversa em seu tempo quanto a mudança da transmissão por faísca para onda contínua (CW) na década de 1920. O impacto da banda lateral foi enorme e as mudanças que ela trouxe foram imensas. É algo absolutamente comum e onipresente hoje, presente em praticamente todos os equipamentos amadores produzidos comercialmente. E não é útil apenas para comunicação de voz; a tecnologia de banda lateral é empregada em modems de computador, e a banda lateral vestigial (VSB) foi desenvolvida para uso em televisão digital.

A existência de bandas laterais distintas da portadora foi determinada matematicamente pela primeira vez em 1914. Um ano depois, John R. Carson, um engenheiro que trabalhava para a AT&T, inventou a tecnologia de banda lateral para aumentar o número de chamadas telefônicas de longa distância que podem ser transmitidas simultaneamente.

A invenção de Carson, que utilizava filtros para remover a portadora e uma das bandas laterais, porém deixando passar a outra, foi patenteada na Inglaterra naquele mesmo ano, mas uma briga judicial suspendeu sua patente nos Estados Unidos até 1923. 

Em janeiro daquele ano, aconteceu a primeira transmissão transatlântica experimental utilizando a banda lateral única a partir de Long Island, Nova York, para Londres, Inglaterra. Em 1927, um canal regular de radiotelefonia bidirecional transatlântica em LF usando a banda lateral foi aberto para uso comercial a um custo de 75 dólares por uma chamada de três minutos (cerca de 760 dólares em valores de hoje!).

Não demoraria muito para que os radioamadores notassem e abraçassem essa novidade. Uma série de três artigos sobre banda lateral de Robert Moore, W6DEI, apareceu na revista Amateur Radio R/9 em 1933 e 1934, e o editor técnico da QST, James Lamb, W1CEI, publicou o primeiro artigo da revista sobre o assunto, “Background for Single Side-Band Phone” em outubro de 1935.

Na introdução editorial de seu artigo, foi dito que "na Reunião do Conselho da ARRL de 1933, a equipe técnica da QST foi instruída a investigar a viabilidade da transmissão de fonia por meio de banda lateral única sem portadora em frequências amadoras".

Algumas experiências com banda lateral foram realizadas em meados da década de 1930 por um pequeno grupo de radioamadores, mas foram dificultadas pelas limitações tecnológicas dos equipamentos da época. A experiência foi reportada na seção “Correspondência dos membros” da revista QST de fevereiro de 1948, p 64.

Veio então a Segunda Guerra Mundial trazendo enormes avanços na tecnologia de rádio, e mudou completamente esse quadro. Após o final da guerra, o Radioamadorismo foi novamente autorizado e não havia mais nenhum impedimento tecnológico para a banda lateral ser utilizada, especialmente por conta da necessidade urgente de um modo de transmissão que ocupasse menos largura de banda do que o AM e assim liberasse espaço nas congestionadas faixas amadoras. A banda lateral era perfeita para resolver este problema, e uma "ajudinha" da ARRL espalharia a novidade e alteraria o curso do Radioamadorismo.

W6QYT em Stanford


Aquela série de artigos publicada pela QST em 1948 que ajudaria a popularizar o SSB foi inspirada por um trabalho experimental utilizando banda lateral iniciado em 1947 nas bandas de 75 e 20 metros na estação W6YX, do Clube de Rádio da Universidade de Stanford, na Califórnia. Na primeira edição, o editor técnico assistente Byron Goodman, W1DX, descreveu esse novo modo de comunicação no artigo entitulado “O que é a fonia em banda lateral”.

Em seguida, Oswald Villard, W6QYT, de Stanford, explicou os resultados dos testes de transmissão feitos por seu clube e mostrou aos radioamadores como sintonizar esses novos sinais. No artigo, ele aconselhou: “recomendamos colocar o ganho de RF no mínimo quando o BFO é usado para demodulação”. O conselho seria repetido em muitas edições da QST para ajudar aos radioamadores não familiarizados com a sintonia daqueles estranhos sinais. 

Finalmente, Art Nichols, WØTQK, detalhou o equipamento de banda lateral que ele construiu para se comunicar com W6YX em “Um transmissor de banda lateral única para operação amadora”. Uma foto publicada no mês seguinte mostrou a estação de Stanford. Veja:


A foto acima foi publicada na edição de fevereiro de 1948 da QST. Sua legenda diz: “Embora não hajam informações técnicas completas no momento sobre o transmissor de banda lateral única com portadora suprimida da estação W6YX, esta fotografia mostra Dave Thomson, W6VQB, mostrando o amplificador final para Robert D. Smith, W6QUW, presidente do Stanford Radio Club.

O transmissor foi projetado por Oswald G. Villard, Jr, W6QYT, da faculdade de engenharia elétrica da Universidade de Stanford. Em 31 de setembro de 1947, Oswald realizou um contato com Winfield G. Wagener, W6VQD na faixa de 75 metros. A era do SSB havia começado. Esta foi a primeira transmissão amadora de banda lateral única, e foi feita a partir da estação do clube.

[N. do T.: Como se não bastasse seu papel na revolução da banda lateral, a Universidade de Stanford mais tarde estaria na vanguarda de outra revolução tecnológica — o computador — e teria importância vital no desenvolvimento do vizinho “Vale do Silício”. O próprio Oswald Villard foi um pioneiro nos primeiros estudos sobre propagação por dispersão de meteoros (meteor scatter).]

No mês seguinte, um anúncio de página inteira da National Company na QST exaltava as possibilidades da banda lateral. Em abril, o editor técnico do QST, George Grammer, W1DF, foi profético:

Pode não ser exagero dizer que a forma como fazemos fonia hoje em dia será tão obsoleta, daqui a alguns anos, quanto a transmissão por faísca se tornou alguns anos depois que a transmissão por onda contínua começou. A "antiquada fonia" vai acabar sendo tolerada apenas onde houver suficiente espaço para acomodá-la. Fonte: “Tópicos técnicos”, QST, abril de 1948, p 29.

Em julho do mesmo ano, a coluna de Byron Goodman “On the Air with Single Sideband” estreou na revista QST, mantendo os Radioamadores informados sobre as novidades da banda lateral nos Estados Unidos e em todo o mundo. A mesma edição também apresentava um anúncio de página inteira para válvulas tetrodo da empresa Eitel McCullough (Eimac) voltadas especificamente para entusiastas de bandas laterais. Era um sinal de que a indústria começava a enxergar o potencial do mercado de equipamentos para uso em banda lateral amadora.


Este anúncio de página inteira das válvulas Eimac, publicado na edição de julho de 1948 da QST, divulga as vantagens do SSSC (SSB).

Outro sinal claro do potencial da banda lateral pode ser avaliado pelas cartas ao editor na QST. Em outubro de 1948, um leitor denunciou o que ele chama de “balaio de gatos do SSB” e acusou a revista de “tentar enfiar a banda lateral goela abaixo na comunidade radioamadorística”. 

Porém, muitos radioamadores estavam abertos às possibilidades oferecidas pela banda lateral, percebendo que ela era uma solução para os problemas reais que atormentavam as bandas de radioamador. Certo radioamador canadense escreveu na edição de dezembro: “Pessoalmente, ainda não tive experiência com banda lateral única, mas qualquer coisa que possa melhorar a superlotação de nossas bandas hoje e nos permitir fazer nossos contatos sem QRM, sou totalmente a favor”.

Filtro versus Fase


No ano seguinte, “On the Air With Single Sideband” discutia as diferenças entre gerar sinais de banda lateral com filtros e sistemas baseados em cancelamento de fase. O primeiro utilizava filtros estreitos e múltiplas conversões de frequência, coisa que muitos radioamadores sentiam que estava acima de sua capacidade. Mas os sistemas baseados em cancelamento de fase ofereciam uma solução mais simples para construir e colocar no ar um transmissor de banda lateral. 

Ralph VL Hartley, da Western Electric, mais conhecido pelos radioamadores pela invenção do circuito oscilador Hartley em 1915, patenteou um sistema SSB por faseamento em 1928, mas Don Norgaard, W2KUJ, seria o pioneiro em seu uso em “A New Approach to Single Sideband ” na revista QST de junho de 1948. Em abril de 1950, a revista relataria que os radioamadores que usavam métodos de cancelamento de fase já eram o dobro dos que usavam métodos de filtragem.

Os fabricantes começaram a prestar mais atenção ao novo modo. Na QST de junho de 1950, um anúncio de página inteira da Collins Radio Company afirmou que seu receptor 75A-1 era o “Receptor SSSC do ano” e, em janeiro de 1951, a revista anunciou um transmissor de banda lateral amador produzido comercialmente, o “SSB Jr.”, novidade da Eldico. 


Este anúncio da Eldico apresenta o novo equipamento de banda lateral de 7 válvulas e 5 W da empresa. “Todos podem agora aproveitar os benefícios da transmissão em banda lateral única”, diz o anúncio.

Em abril de 1953, a QST anunciou o primeiro QSO transatlântico em banda lateral na faixa dos 75 metros. Na época, haviam mais de 300 estações ativas em banda lateral dos EUA. Em novembro de 1956, a QST anunciou o primeiro diploma WAC e WAS exclusivo para SSB (havia 48 estados na época). O DXCC em SSB havia sido lançado um ano antes.

Os militares prestam atenção


Em meados da década de 1950, Radioamadores contribuíram para alterar o curso da Guerra Fria. O General Curtis LeMay, W6EZV, era o chefe do Comando Aéreo Estratégico (SAC), encarregado de enfrentar a ameaça nuclear soviética. As novas aeronaves a jato que estavam sendo adotadas não tinham mais operador de rádio em seus cockpits e o SAC estava planejando o uso de transmissores AM para uso dos pilotos. 

LeMay tomou conhecimento do sucesso do SSB entre os radioamadores e, em 1956, realizou dois voos, um para Okinawa e outro para a Groenlândia, durante os quais o SSB foi testado em contatos com radioamadores usando rádios comuns. Dois dos radioamadores convidados para operar nesses voos foram Art Collins, WØCXX, da Collins Radio, e Leo Meyerson, WØGFQ, da World Radio Labs. O SSB superou em muito o desempenho dos sistemas comuns em AM então em uso pelos militares. 

Em 1957, o SSB foi formalmente adotado pelo SAC para uso em seus novos bombardeiros B-52 (Fonte: Charles A. Keene, “Once Again, a Ham Operator in Command”, QST, maio de 1997, p 43). No mesmo ano, o General Francis “Butch” Griswold, KØDWC, também do SAC, faria uma palestra sobre o assunto na Convenção Nacional da ARRL em Chicago.


Foto do General Curtis LeMay, então K3JUY/K4RFA, publicada em 1961 na QST. Na ocasião era anunciada sua nomeação como chefe de gabinete da Força Aérea dos Estados Unidos. Em meados dos anos 50, o Gal. LeMay mudou as comunicações do Comando Aéreo Estratégico de AM para SSB, com base em sua experiência como radioamador.

Escrevendo para a QST de janeiro de 1953, Byron Goodman relataria que “Art Collins, WØCXX em Cedar Rapids, Iowa, está fazendo muitos dos amantes do AM pensarem 'talvez essa coisa de SSB seja interessante, afinal de contas'”. De fato, ele estava. Além de seu envolvimento pessoal em ajudar a SAC a decidir sobre o SSB para seus sistemas de comunicação, sua empresa, a Collins Radio, acabaria dando indiscutivelmente a maior contribuição individual para o uso amador do SSB quando, em 1955, praticamente abandonou a produção de equipamentos AM e investiu seus recursos no desenvolvimento de equipamentos de banda lateral. 

Também publicou uma série de "Notas de engenharia" de página inteira que apareceram na QST no final de 1954. Em maio de 1957, a Collins faria história com o lançamento do transceptor KWM-1, “o primeiro transceptor móvel”, dizia o anúncio no QST, “e o primeiro a oferecer SSB”. Uma análise do equipamento na edição de abril de 1958 elogiava o lançamento:

É opinião deste escritor que o KWM-1 pode muito bem marcar o fim de uma era e o início de
outra. Este rádio é muito mais que um simples equipamento de radioamador; pode vir a ser um estilo de vida (no Radioamadorismo). Fonte: “Equipamento recente”, QST, abril de 1958, p 23.

A coluna de Byron Goodman “On the Air With Single Sideband” foi descontinuada após março de 1954 e o manual do ARRL, “Single Sideband for the Radio Amateur”, teve sua primeira edição publicada em dezembro do mesmo ano. O SSB conquistou um lugar cativo no coração dos Radioamadores.

A resistência do AM


A mudança, no entanto, não foi assim tão fácil para alguns. Alguns ferrenhos defensores do AM, que debochavam do SSB e de sua modulação “Pato Donald”, bem como os que desdenhavam da monopolização de frequência da “modulação antiga”, continuariam na briga por muitos anos após essa época.

Em janeiro de 1963, uma carta publicada na coluna “Correspondência dos membros” da QST, pedindo que a ARRL entrasse na briga para “solicitar à FCC um prazo de seis meses para obrigar os 'tiozinhos do AM' passarem para o SSB” resultou em uma enxurrada de cartas de apoio aos “tiozinhos do AM”. Por fim, a questão acabaria sendo ofuscada por outra polêmica: as mudanças regulatórias do licenciamento incentivado.

O SSB ganhou a batalha.


Artigo original: 

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gmcelroy@eagle.ca


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