Por Alisson, PR7GA

Sempre que algum desastre natural ou calamidade pública ocorre, um tema recorrente e muito polêmico aparece nas rodas de conversa daqueles que gostam de radiocomunicação, sejam licenciados ou não. Trata-se da questão do uso de nossas faixas de Radioamador por não licenciados em "situações de emergência".

Neste artigo, discutiremos se a alegação de que, em uma situação dessas, a Lei permitiria o uso indiscriminado e descriminalizado do rádio, ou seja, "vale tudo".

Antes de prosseguir, um "disclaimer". 


Primeiro, não sou profissional do Direito e minha opinião reflete apenas a opinião de um "leigo" que está acostumado com a legislação específica do Serviço Radioamador. 

Segundo, a análise feita neste texto NÃO está levando em consideração situações excepcionais, extremas, particulares e de âmbito restrito. Situações extremas/excepcionais/particulares/restritas PODEM necessitar de ações igualmente extremas/excepcionais/particulares/restritas. Minha análise é feita tendo como pressuposto que TODA a Lei DEVE ser cumprida à risca, integralmente, sem discussão, pois somos obrigados pelo ordenamento jurídico a cumpri-la. Discutir a legislação é possível, obviamente, mas isso pode e deve ser feito nos foros/ambientes adequados. Porém, como sabemos muito bem, não cabe inventar leis que não existem ou descrumprir a legislação, mesmo quando não concordamos com ela.


A pergunta que não quer calar...


“Eu estou em emergência devido à situação X, Y, Z. Não sou Radioamador. Conheço a Frequência Nacional de Chamada, ou a Repetidora A ou B. Posso usar o rádio e pedir ajuda?”

❌ Resposta: Não pode.



O que diz a Lei



Na legislação brasileira não há, em nenhuma norma, seja Lei, Resolução da ANATEL nem nada parecido, autorização explícita ou exceção à regra que PROÍBE que pessoas não habilitadas utilizem o rádio. Mesmo em emergências. Pelo contrário, encontramos na Lei Geral de Telecomunicações, norma máxima da área no Brasil, o seguinte:

Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação:

Pena - detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, direta ou indiretamente, concorrer para o crime.

Art. 184. (...)

Parágrafo único. Considera-se clandestina a atividade desenvolvida sem a competente concessão, permissão ou autorização de serviço, de uso de radiofreqüência e de exploração de satélite.

Art. 185. O crime definido nesta Lei é de ação penal pública, incondicionada, cabendo ao Ministério Público promovê-la.

Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9472.htm


Em resumo:

  1. Usar rádio sem estar autorizado para tal é crime;
  2. A pena para este crime é detenção e uma multa altíssima;
  3. Tanto quem usa o rádio como quem se comunica com o clandestino são alcançados pela tipificação do crime e penalizados.
  4. O crime não exige que a "vítima" preste queixa: é dever do Estado processar o infrator.

Ou seja, utilizar um rádio exige autorização prévia! Não há nenhuma exceção, e as consequências por violar esta regra são sérias!


As faixas de frequência destinados aos Radioamadores são de exclusivo uso por pessoas devidamente habilitadas (que prestaram exames para provar sua aptidão para operar uma estação de Radioamador) e licenciadas (receberam da ANATEL uma autorização explícita e limitada para operar um rádio - a licença de estação). 

Observe que a Lei é clara. Utilizar um rádio sem a devida autorização prévia é crime.


Ninguém pode mudar a Lei por conta própria


"Ah, mas essa lei é injusta/cretina/absurda/cruel/imoral/engorda(!!!) e não concordo com ela!!!!" alguém poderia dizer. 

Porém...

Ninguém tem o poder de mudar uma norma ao seu bel-prazer. Pior ainda, ninguém tem o poder de generalizar sua interpretação e falar que "pode falar em uma situação X, Y ou Z" quando a norma não traz nenhuma exceção à regra.

Imagine se cada um de nós resolvesse "flexibilizar" as leis para que elas se amoldassem às situações particulares que vivemos no dia a dia. Seria maravilhoso para nós, mas um desastre para a coletividade. Não é à toa que a Constituição Federal diz, em seu artigo quinto, que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Todos nós seguimos as mesmas leis e ninguém tem o direito de, por si só, alterá-las ou se eximir de cumpri-las.


Quer quebrar a Lei? Prepare-se para tomar PROCESSO



Neste momento, talvez a grande maioria dos leitores já deva ter se "armado" para me apedrejar em praça pública, falando o quanto sou insensível, que a "uma vida vale mais que o mundo inteiro", etc. Devido à nevralgia do tema, mais uma vez relembro o que escrevi no início: "situações extremas/excepcionais/particulares/restritas PODEM necessitar de ações igualmente extremas/excepcionais/particulares/restritas". E isso PODE incluir quebrar regras. Porém, esta excepcionalidade não me dá o direito de generalizar a exceção, afirmando que DEVO quebrar as regras sempre. 

Mais ainda: ao quebrar a Lei, o infrator SERÁ enquadrado pela Justiça e TERÁ DE PROVAR que agiu por força da necessidade. Não há "varinha mágica" que impeça isso.

Há casos em que, por exemplo, pessoas são inocentadas de uma acusação de homicídio quando fica provado que agiram por legítima defesa. Veja que, mesmo em casos assim, a pessoa será sempre processada caso fira ou mate alguém, e no tribunal terá de provar que agiu dessa forma por não ter outra alternativa. E, neste caso, isso acontece mesmo havendo lei específica que define a exceção (legítima defesa). 

Já no âmbito das telecomunicações, como já foi dito, NÃO EXISTE nenhuma exceção à regra, nenhuma norma que defina algo como "legítima defesa", ou "legítimo uso do rádio" em caso de emergências ou qualquer outra situação normal ou atípica. Não há!!!! Ponto final!!!!

Veja novamente o Art. 185 da LGT, citado no início deste texto.

Art. 185. O crime definido nesta Lei é de ação penal pública, incondicionada, cabendo ao Ministério Público promovê-la.

O que isso significa, em termos práticos:

  • "Crime de ação penal pública": Isso quer dizer que não depende da vítima ou de um particular fazer uma denúncia formal. O próprio Estado (por meio do Ministério Público) tem o dever de agir assim que toma conhecimento da infração.
  • "Incondicionada": Significa que não há nenhuma condição prévia para que o processo aconteça. Ou seja, basta que o crime ocorra — ou seja denunciado — para que as autoridades sejam obrigadas a investigar e processar.
  • "Caberá ao Ministério Público promovê-la": O Ministério Público (MP) tem a obrigação de abrir e conduzir o processo criminal contra o infrator.

⚠️ Aplicado ao uso ilegal de rádio:

Se alguém usa rádio sem licença (atividade clandestina de telecomunicação), e isso chega ao conhecimento das autoridades, o Ministério Público pode e deve abrir processo, mesmo que ninguém tenha feito uma queixa formal. A lei não permite “passar pano” nem aceitar “desculpas” para deixar o caso de lado.


Generalizar a exceção?

"Ah, mas tem a legítima defesa e o excludente de ilicitude..."

Sim, tem. Mas não é bem assim que a coisa funciona.

Voltemos ao âmbito criminal. Tomando como base a existência da tal "legítima defesa", seria lícito ou mesmo prudente afirmar taxativamente que é permitido matar um ladrão se ele invadir sua casa? Ou, usando outras analogias: seria lícito ou prudente afirmar taxativamente que é permitido dirigir sem habilitação (CNH) para socorrer uma pessoa em perigo, ou que é permitido que um veterinário, ou um enfermeiro, ou mesmo um profissional da biomedicina possa realizar algum procedimento médico em caso de necessidade?

Eu tenho certeza que não. As consequências de se afirmar isso seriam nefastas.

Por outro lado, não estou "demonizando" quem age ou agiu assim de forma legítima (em caso de real necessidade e assumindo o risco e as consequências de ir contra a Lei). Apenas chamo a atenção de que não seria prudente afirmar que "é permitido matar" só porque a Lei define uma exceção que pode ou não ser aplicada em situações específicas para que alguém escape de uma condenação por homicídio. 

É temerário afirmar que exceções podem tornar-se regras. Mesmo situações-limite estão sujeitas a regras que a Lei define bem, como são os casos de legítima defesa.

Voltando ao âmbito do assunto que estou expondo, que é a licitude de alguém não habilitado/licenciado utilizar um rádio em uma situação-limite, ao contrário da situação de legítima defesa, não há exceções na legislação brasileira referente a Telecomunicações que desobrigue a prévia autorização/licença/habilitação, como já expliquei. Há inclusive casos de pessoas que usaram o rádio numa pretensa situação de emergência, mas acabaram sendo processadas e tiveram de provar que não tinham alternativa, contratando advogado e tendo uma grande dor de cabeça por ANOS a fio, que pode inclusive levar a consequências bem ruins, como impossibilidade de concorrer em concursos públicos, por exemplo. 

Novamente, a Lei não traz nenhuma exceção. O uso do rádio é sobremaneira regulado, quase tanto quanto o uso de uma arma. E se pensarmos bem, com exceção das consequências diretas de seu mau uso, são temas bastante semelhantes.

Falsa sensação de segurança


Por outro lado, e talvez seja esse o maior problema, é importante mencionar que um rádio pode dar uma falsa sensação de segurança nas mãos de quem não sabe utilizá-lo. Daí também a irresponsabilidade e o GRANDE perigo de se afirmar que qualquer um "pode" usar o rádio em uma situação limite, indiscriminadamente. Alguém que não esteja suficientemente treinado a usar um rádio pode simplesmente não conseguir nenhuma ajuda por não saber manejá-lo corretamente. E este treinamento só acontece, no contexto do Radioamadorismo, quando a pessoa é licenciada e passa a utilizar o rádio em seu dia a dia, quando devidamente licenciado. O hábito faz o monge.





Os privilégios de quem é Radioamador de fato e de direito


Os Radioamadores são escrutinados pela ANATEL para que provem que são capazes de, só pra citar alguns exemplos, utilizar um rádio sem que este uso cause interferência em outros serviços, sem que interfira com outros Radioamadores e até que não ofereça riscos à saúde das pessoas, incluindo a eles/nós próprios. Graças a esses exames, caso sejamos aprovados, temos alguns privilégios, como por exemplo utilizar um rádio dentro das faixas autorizada, criar e construir nossos próprios equipamentos, antenas, cabos, fontes, etc, dentro de certos parâmetros, e muito mais. Porém, repito, nós provamos que podemos fazer isso, e a ANATEL só nos concedeu esses privilégios com base nisso.

Por mais inocente que possa parecer, o mau uso de um equipamento como o rádio pode trazer consequências terríveis, ainda mais com a verdadeira invasão de rádios chineses baratos e vendidos a qualquer um por pouco mais do que o valor de uma pizza. Imagine se todos os que possuem um rádio comecem a achar que há uma exceção oficial para seu uso sem habilitação/autorização... Um CAOS!


Conclusão



Diante de tudo o que foi exposto, fica evidente que a utilização das faixas de Radioamador é um privilégio regulamentado, não um direito aberto a qualquer pessoa em nome da urgência. A legislação brasileira é clara: só pode operar um rádio quem está devidamente habilitado e licenciado. A ausência de exceções explícitas para situações de emergência torna ainda mais arriscada qualquer ação fora do previsto na Lei.

Isso não significa, no entanto, que os Radioamadores fechem os olhos às tragédias humanas. Pelo contrário: justamente por entenderem o valor da comunicação em momentos críticos, nós historicamente atuamos de forma voluntária e coordenada em desastres, prestando auxílio dentro da legalidade. A solução, portanto, não está em "relaxar" as regras, mas sim em fortalecer as redes de apoio organizadas e incentivar que mais pessoas se tornem Radioamadores, com a devida preparação necessária.

Também é fundamental combater a falácia de que o rádio, nas mãos de qualquer um, pode ser a salvação garantida. Sem preparo, sem conhecimento técnico e sem familiaridade com os procedimentos corretos, ele pode falhar nos momentos mais importantes, criando uma falsa sensação de segurança e, em alguns casos, até atrapalhando operações reais de resgate.

Por fim, se você valoriza o papel do rádio em emergências e deseja ter esse recurso à disposição de forma legal e eficaz, a resposta é simples: estude, se prepare, preste o exame da ANATEL e torne-se parte da comunidade de Radioamadores. Assim, estará não só respeitando a Lei, mas também fortalecendo uma rede que, quando acionada corretamente, realmente salva vidas.


Epílogo: Como se tornar Radioamador



Para auxiliar no processo para se tornar Radioamador e além, eu e outros Radioamadores criamos uma Comunidade de grupos no whatsapp. O grupo específico para candidatos ao Radioamadorismo pode ser acessado por este link: https://chat.whatsapp.com/JY5dYfw8LF8J2T8spiyKeY


Forte abraço de PR7GA!




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